Os Mistérios da Vida de Cristo. caIC 512-630

PARÁGRAFO 3

OS MISTÉRIOS DA VIDA DE CRISTO

 

  1. Relativamente à vida de Cristo, o Símbolo da Fé apenas fala dos mistérios da Encarnação (conceição e nascimento) e da Páscoa (paixão, crucifixão, morte, sepultura, descida à mansão dos mortos, ressurreição, ascensão). Nada diz explicitamente dos mistérios da vida oculta e pública de Jesus. Mas os artigos que dizem respeito à Encarnação e à Páscoa de Jesus esclarecem toda a vida terrena de Cristo. «Tudo o que Jesus fez e ensinou desde o princípio até ao dia em que foi elevado ao céu» (At 1, 1-2) deve ser visto á luz dos mistérios do Natal e da Páscoa.

 

  1. A catequese, segundo as circunstâncias, explanará toda a riqueza dos mistérios de Jesus. Aqui, basta indicar alguns elementos comuns a todos os mistérios da vida de Cristo (I), para depois esboçar os princ ipais mistérios da vida oculta (II) e pública (III) de Jesus.
  1. Toda a vida de Cristo é mistério
  1. Muitas coisas que interessam à curiosidade humana, a respeito de Jesus, não figuram nos evangelhos. Quase nada se diz da sua vida em Nazaré e mesmo grande parte da sua vida pública não é relatada (186). O que foi escrito nos evangelhos, foi-o «para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome» (Jo 20, 31).

 

  1. Os evangelhos foram escritos por homens que foram dos primeiros a receber a fé (187) e que quiseram partilhá -la com outros. Tendo conhecido, pela fé, quem é Jesus, puderam ver e fazer ver os traços do seu mistério em toda a sua vida terrena. Desde os panos do nascimento (188) até ao vinagre da paixão (189) e ao sudário da ressurreição (190), tudo, na vida de Jesus, é sinal do seu mistério. Através dos seus gestos, milagres e palavras, foi revelado que «n’Ele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade» (Cl 2, 9). A sua humanidade aparece, assim, como «sacramento», isto é, sinal e instrumento da sua divindade e da salvação que Ele veio trazer. O que havia de visível na sua vida terrena conduz ao mistério invisível da sua filiação divina e da sua missão redentora.

OS TRAÇOS COMUNS DOS MIS TÉRIOS DE JESUS

  1. Toda a vida de Cristo é revelação do Pai: as suas palavras e atos, os seus silêncios e sofrimentos, a maneira de ser e de falar. Jesus pode dizer: «Quem Me vê, vê o Pai» ( Jo 14, 9); e o Pai: «Este é o meu Filho predileto:

escutai-O» (Lc 9, 35). Tendo-Se nosso Senhor feito homem para cumprir a vontade do Pai (191), os mais pequenos pormenores dos seus mistérios manifestam «o amor de Deus para conosco» (192).

  1. Toda a vida de Cristo é mistério de redenção. A redenção vem -nos, antes de mais, pelo sangue da cruz (193). Mas este mistério está a tuante em toda a vida de Cristo: já na sua Encarnação, pela qual, fazendo -Se pobre, nos enriquece com a sua pobreza (194); na vida oculta que, pela sua obediência (195), repara a nossa insubmissão; na palavra que purifica os seus ouvintes

 

(196): nas curas e expulsões dos demónios, pelas quais «toma sobre Si as nossas enfermidades e carrega com as nossas doenças» (Mt 8, 17)(197); na ressurreição, pela qual nos justifica (198).

 

  1. Toda a vida de Cristo é mistério de recapitulação. Tudo o que Jesus fez, disse e sofreu tinha por fim restabelecer o homem decaído na sua vocação originária:

«Quando Ele encarnou e Se fez homem, recapitulou em Si a longa história dos homens e proporcionou-nos, em síntese, a salvação, de tal forma que aquilo que havíamos perdido em Adão – isto é, sermos imagem e semelhança de Deus – o recuperássemos em Cristo Jesus» (199). «Aliás, foi por isso que Cristo passou por todas as idades da vida, restituindo assim a todos os homens a comunhão com Deus» (200).

A NOSSA COMUNHÃO NOS MISTÉRIOS DE JESUS

  1. Toda a riqueza de Cristo «se destina a todos os homens e constitui o bem de cada um» (201). Cristo não viveu para Si mesmo, mas para nós, desde a Encarnação «por nós homens e para n ossa salvação» (202) até á sua morte «por causa dos nossos pecados» (1 Cor 15, 3) e à sua ressurreição «para nossa justificação» ( Rm 4, 25). Ainda agora, Ele é «o nosso advogado junto do Pai» (1 Jo 2, 1), «sempre vivo para interceder por nós» ( Heb 7, 25). Com tudo o que viveu e sofreu por nós, uma vez por todas, Ele está para sempre presente «em nosso favor, na presença de Deus» (Heb 9, 24).

 

  1. Em toda a sua vida, Jesus mostra-Se como nosso modelo (203): é «o homem perfeito» (204), que nos convida a tornarmo-nos seus discípulos e a segui-Lo; com a sua humilhação, deu -nos um exemplo a imitar (205); com a sua oração, convida -nos à oração (206); com a sua pobreza, incita –nos a aceitar livremente o despojamento e as perseguições (207).

 

  1. Tudo o que Cristo viveu, Ele próprio faz com que o possamos viver n’Ele e Ele vivê-lo em nós. «Pela sua Encarnação, o Filho de Deus uniu -Se, de certo modo, a cada homem» (208). Nós somos chamados a ser um só com

Ele; Ele faz-nos comungar, enquanto membros do seu corpo, em tudo o que

Ele próprio viveu na sua carne por nós, e como nosso modelo:

«Devemos continuar a completar em nós os estados e mistérios da vida de Jesus e pedir-Lhe continuamente que Se digne consumá-los perfeitamente em nós e em toda a sua Igreja […]. Na verdade, o Filho de Deus deseja comunicar e prolongar, de certo modo, os seus mistérios em nós e em toda a sua Igreja, […] quer pelas graças que decidiu conceder-nos, quer pelos efeitos que deseja produzir em nós, por meio destes mistérios. É neste sentido que Ele quer completá-los em nós» (209).

  1. Os mistérios da infância e da vida oculta de Jesus

OS PREPARATIVOS

  1. A vinda do Filho de Deus à terra é um acontecimento tão grandioso, que Deus quis prepará-lo durante séculos. Ritos e sacrifícios, figuras e símbolos da «primeira Aliança» (210), tudo Deus faz convergir para Cristo. Anuncia-O pela boca dos profetas que se sucedem em Israel. E, por outro lado, desperta no coração dos pagãos a obscura expectati va desta vinda.

 

  1. São João Baptista é o precursor imediato do Senhor (211), enviado para Lhe preparar o caminho (212). «Profeta do Altíssimo» (Lc 1, 76), supera todos os profetas (213), é o último deles (214) inaugura o Evangelho (215); saúda a vinda de Cristo desde o seio da sua Mãe (216) e põe a sua alegria em ser «o amigo do esposo» (Jo 3, 29) que ele designa como «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1, 29). Precedendo Jesus «com o espírito e o poder de Elias» (Lc 1, 17), dá testemunho d’Ele pela sua pregação, pelo seu baptismo de conversão e, finalmente, pelo seu martírio (217).

 

  1. Ao celebrar em cada ano a Liturgia do Advento, a Igreja atualiza esta expectativa do Messias. Comungando na longa preparação da primeira vinda do Salvador, os fiéis renovam o ardente desejo da sua segunda vinda (218). Pela celebração do nascimento e martírio do Precursor, a Igreja une-se ao seu desejo: «Ele deve crescer e eu diminuir» (Jo 3, 30).

O MISTÉRIO DO NATAL

  1. Jesus nasceu na humildade dum estábulo, no seio duma família pobre

 

(219). As primeiras testemunhas deste acontecimento são simples pastores. E é nesta pobreza que se manifesta a glória do céu (220). A Igreja não se cansa de cantar a glória desta noite:

«Hoje a Virgem dá à luz o Eterno

e a terra oferece uma gruta ao Inacessível.

Cantam-n’O os anjos e os pastores,

e com a estrela os magos põem -se a caminho, porque Tu nasceste para nós, pequeno Infante. Deus eterno!» (221)

  1. «Tornar-se criança» diante de Deus é a condição para entrar no Reino

 

(222), e para isso, é preciso abaixar-se (223) tornar-se pequeno. Mais ainda: é preciso «nascer do Alto» (Jo 3, 7), «nascer de Deus» (224) para se «tornar filho de Deus» (225). O mistério do Natal cumpre -se em nós quando Cristo «Se forma» em nós (226). O Na tal é o mistério desta «admirável permuta»:

«O admirabile commercium! Creator generis humani, animatum corpus sumens de Virgine nasci dignatus est; et, procedens homo sine semine, largitus est nobis suam deitatem». – «Oh admirável permuta! O Criador do género humano, tomando corpo e alma, dignou-Se nascer duma Virgem; e, feito homem sem progenitor humano, tornou-nos participantes da sua divindade!» (227).

OS MISTÉRIOS DA INFÂNCIA DE JESUS

  1. A circuncisão de Jesus, oito dias depois do seu nascimento (228), sinal da sua inserção na descendência de Abraão, no povo da Aliança, da sua submissão à Lei (229) e da sua deputação para o culto de Israel, no qual participará durante toda a sua vida. Este sinal prefigura «a circuncisão de Cristo», que é o Baptismo (230).

 

  1. A Epifania é a manifestação de Jesus como Messias de Israel, Filho de Deus e salvador do mundo. Juntamente com o baptismo de Jesus no Jordão e as bodas de Caná (231), a Epifania celebra a adoração de Jesus pelos «magos» vindos do Oriente (232). Nestes «magos», representantes das religiões pagãs circunvizinhas, o Evangelho vê as primícias das nações, que acolhem a Boa-Nova da salvação pela Encarnação. A vinda dos magos a Jerusalém, para «adorar o rei dos judeus» (233), mostra que eles procuram em Israel, à luz messiânica da estrela de David (234), Aquele que será o rei das nações (235). A sua vinda significa que os pagãos não podem descobrir Jesus e adorá-Lo como Filho de Deus e Salvador do mundo, senão voltando-se para os Judeus (236) e recebendo deles a sua promessa messiânica, tal como está contida no Antigo Testamento (237). A Epifania manifesta que «todos os povos entram na família dos patriarcas» (238) e adquire a « israelitica dignitas» a dignidade própria do povo eleito (239).
  1. A apresentação de Jesus no templo (240) mostra-O como Primogénito que pertence ao Senhor (241). Com Simeão e Ana, é toda a expectativa de Israel que vem ao encontro do seu Salvador (a tradição bizantina designa por encontro este acontecimento). Jesus é reconhecido como o Messias tão longamente esperado, «luz das nações» e «glória de Israel», mas também como «sinal de contradição». A espada de dor, predita a Maria, anuncia essa outra oblação, perfeita e única, da cruz , que trará a salvação que Deus «preparou diante de todos os povos».

 

  1. A fuga para o Egito e o massacre dos Inocentes (242) manifestam a oposição das trevas à luz: «Ele veio para o que era seu e os seus não O receberam» (Jo 1, 11). Toda a vida de Cristo decorrerá sob o signo da perseguição. Os seus partilham -na com Ele (243). O seu regresso do Egito (244) lembra o Êxodo (245) e apresenta Jesus como o libertador definitivo.

OS MISTÉRIOS DA VIDA OCULTA DE JESUS

  1. Durante a maior parte da sua vida, Jesus partilhou a condição da imensa maioria dos homens: uma vida quotidiana sem grandeza aparente, vida de trabalho manual, vida religiosa judaica sujeita à Lei de Deus (246), vida na comunidade. De todo este período, é-nos revelado que Jesus era «submisso» a seus pais (247) e que «ia crescendo em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2, 52).

 

  1. A submissão de Jesus à sua Mãe e ao seu pai legal foi o cumprimento perfeito do quarto mandamento. É a imagem temporal da sua obediênc ia filial ao Pai celeste. A submissão diária de Jesus a José e a Maria anunciava e antecipava a submissão de Quinta-Feira Santa: «Não se faça a minha vontade […]» (Lc 22, 42). A obediência de Cristo, no quotidiano da vida oculta, inaugurava já a recuperação daquilo que a desobediência de Adão tinha destruído (248).

 

  1. A vida oculta de Nazaré permite a todos os homens entrar em comunhão com Jesus, pelos diversos caminhos da vida quotidiana:

«Nazaré é a escola em que se começa a compreender a vida de Jesu s, é a escola em que se inicia o conhecimento do Evangelho […] Em primeiro lugar, uma lição de silêncio. Oh! se renascesse em nós o amor do silêncio, esse admirável e indispensável hábito do espírito […]! Uma lição de vida familiar Que Nazaré nos ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua austera e simples beleza, o seu carácter sagrado e inviolável […]. Uma lição de trabalho, Nazaré, a casa do “Filho do carpinteiro”! Aqui desejaríamos compreender e celebrar a lei, severa mas redentora, do trabalho

humano […] Daqui, finalmente, queremos saudar os trabalhadores de todo o mundo e mostrar-lhes o seu grande modelo, o seu Irmão divino» (249)

  1. O reencontro de Jesus no templo (250) é o único acontecimento que quebra o silêncio dos evangelhos sobre os anos ocultos de Jesus. Nele, Jesus deixa entrever o mistério da sua consagração total à missão decorrente da sua filiação divina: «Não sabíeis que Eu tenho de estar na casa do meu Pai?». Maria e José «não compreenderam» esta palavra, mas acolher am-na na fé, e Maria «guardava no coração todas estas recordações», ao longo dos anos em que Jesus permaneceu oculto no silêncio duma vida normal.

III. Os mistérios da vida pública de Jesus

O BAPTISMO DE JESUS

535 O início (251) da vida pública de Jesus é o seu baptismo por João, no rio Jordão (252). João pregava «um baptismo de penitência, em ordem à remissão dos pecados» (Lc 3, 3). Uma multidão de pecadores, publicanos e soldados (253), fariseus e saduceus (254) e prostitutas vinha ter com ele, para que os batizasse. «Então aparece Jesus». O Baptista hesita, Jesus insiste: e recebe o baptismo. Então o Espírito Santo, sob a forma de pomba, desce sobre Jesus e uma voz do céu proclama: «Este é o meu Filho muito amado» (Mt 3,13-17). Tal foi a manifestação («epifania») de Jesus como Messias de Israel e Filho de Deus.

  1. Da parte de Jesus, o seu baptismo é a aceitação e a inauguração da sua missão de Servo sofredor. Deixa-se contar entre o número dos pecadores (256). É já «o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (Jo 1, 29), e antecipa já o «baptismo» da sua morte sangrenta (257). Vem, desde já, para «cumprir toda a justiça» (Mt 3,15). Quer dizer que Se submete inteiramente à vontade do Pai e aceita por amor o baptismo da morte para a remissão dos nossos pecados (258). A esta aceitação responde a voz do Pai, que põe toda a sua complacência no Filho (259). O Espírito que Jesus possui em plenitude, desde a sua conceição, vem «repousar» sobre Ele (Jo 1, 32-33) (260) e Jesus será a fonte do mesmo Espírito para toda a humanidade. No baptismo de Cristo, «abriram-se os céus» (Mt 3, 16) que o pecado de Adão tinha fechado, e as águas são santificadas pela descida de Jesus e do Espírito, prelúdio da nova criação.

 

  1. Pelo Batismo, o cristão é sacramentalmente assimilado a Jesus que, no seu baptismo, antecipa a sua morte e ressurreição. Deve entrar neste mistério de humilde abatimento e de penitência, descer à água com Jesus, para de lá subir com Ele, renascer da água e do Espírito para se tornar, no Filho, filho-amado do Pai e «viver numa vida nova» (Rm 6, 4):

«Sepultemo-nos com Cristo pelo Baptismo, para com Ele ressuscitarmos; desçamos com Ele, para com Ele sermos elevados; tornemos a subir com

Ele, para n’Ele sermos glorificados» (261). «Tudo o que se passou com Cristo dá-nos a conhecer que, depois do banho de água, o Espírito Santo desce sobre nós do alto dos céus e, adoptados pela voz do Pai, tornamo-nos filhos de Deus» (262).

A TENTAÇÃO DE JESUS

  1. Os evangelhos falam dum tempo de solidão que Jesus passou no deserto, imediatamente depois de ter sido batizado por João: «Impelido»pelo Espírito para o deserto, Jesus ali permanece sem comer durante quarenta dias. Vive com os animais selvagens e os anjos servem-n’O (263).

No fim desse tempo, Satanás tenta-O por três vezes, procurando pôr em causa a sua atitude filial para com Deus; Jesus repele esses ataques, que recapitulam as tentações de Adão no paraíso e de Israel no deserto; e o Diabo afasta-se d’Ele «até determinada altura» (Lc 4, 13).

  1. Os evangelistas indicam o sentido salvífico deste acontecimento misterioso, Jesus é o Novo Adão, que Se mantém fiel naquilo em que o primeiro sucumbiu à tentação. Jesus cumpre perfeitamente a vocação de Israel: contrariamente aos que outrora, durante quarenta anos, provocaram a Deus no deserto (264), Cristo revela-Se o Servo de Deus totalmente obediente à vontade divina. Nisto, Jesus vence o Diabo: «amarrou o homem forte», para lhe tirar os despojos (265). A vitória de Jesus sobre o tentado r, no deserto, antecipa a vitória da paixão, suprema obediência do seu amor filial ao Pai.

 

  1. A tentação de Jesus manifesta a maneira própria de o Filho de Deus ser Messias, ao contrário da que Lhe propõe Satanás e que os homens (266) desejam atribuir-Lhe. Foi por isso que Cristo venceu o Tentador, por nós: «Nós não temos um sumo -sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas; temos um, que possui a experiência de todas as provações, tal como nós, com excepção do pecado» (Heb 4, 15). Todos os anos, pelos quarenta dias da Grande Quaresma, a Igreja une-se ao mistério de Jesus no deserto.

«O REINO DE DEUS ESTÁ PRÓXIMO»

  1. «Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia. Aí proclamava a Boa-Nova da vinda de Deus, nestes termos: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: convertei -vos e acreditai na Boa-Nova!”» (Mc 1, 14-15). «Por isso, Cristo, a fim de cumprir a vontade do Pai,

deu começo na terra ao Reino dos céus» (267). Ora a vontade do Pai é «elevar os homens à participaçã o da vida divina» (268). E fá-lo reunindo os homens em torno do seu Filho, Jesus Cristo. Esta reunião é a Igreja, a qual é na terra «o germe e o princípio» do Reino de Deus» (269).

  1. Cristo está no centro desta reunião dos homens na «família de Deus». Reúne -os à sua volta pela sua palavra, pelos seus sinais que manifestam o Reino de Deus, pelo envio dos discípulos. E realizará a vinda do seu Reino sobretudo pelo grande mistério da sua Páscoa: a sua morte de cruz e a sua ressurreição. «E Eu, uma vez eleva do da Terra, atrairei todos a Mim» (Jo 12, 32). Todos os homens são chamados a esta união com Cristo (270).

O ANÚNCIO DO REINO DE DEUS

  1. 543. Todos os homens são chamados a entrar no Reino. Anunciado primeiro aos filhos de Israel (271), este Reino messiânico é destinado a acolher os homens de todas as nações (272). Para ter acesso a ele, é preciso acolher a Palavra de Jesus:

«A Palavra do Senhor compara-se à semente lançada ao campo: aqueles que a ouvem com fé e entram a fazer parte do pequeno rebanho de Cristo, já receberam o Reino; depois, por força própria, a semente germina e cresce até ao tempo da messe» (273).

  1. O Reino é dos pobres e pequenos, quer dizer, dos que o acolheram com um coração humilde. Jesus foi enviado para «trazer a Boa -Nova aos pobres» (Lc 4, 18) (274). Declara-os bem-aventurados, porque «é deles o Reino dos céus» (Mt 5, 3). Foi aos «pequenos» que o Pai se dignou revelar o que continua oculto aos sábios e inteligentes (275). Jesus partilha a vida dos pobres, desde o presépio até à cruz : sabe o que é sofrer a fome (276), a sede (277) e a indigência (278). Mais ainda: identifica -se com os pobres de toda a espécie, e faz do amor ativo para com eles a condição da entrada no seu Reino (279).

 

  1. Jesus convida os pecadores para a mesa do Reino: «Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores» (Mc 2, 17) (280). Convida-os à conversão sem a qual não se pode entrar no Reino, mas por palavras e atos, mostra-lhes a misericórdia sem limites do Seu Pai para com eles e a imensa «alegria que haverá no céu, por um só pecador que se arrependa» (Lc 15, 7). A prova suprema deste amor será o sacrifício da sua própria vida, «pela remissão dos pecados» (Mt 26, 28).

 

  1. Jesus chama para entrar no Reino, por meio de parábolas, traço característico do seu ensino (282). Por meio delas, convida para o banquete

do Reino (283), mas exige também uma opção radical: para adquirir o Reino

  • preciso dar tudo (284). As palavras não bastam, exigem-se atos (285). As parábolas são, para o homem, uma espécie de espelho: como é que ele recebe a Palavra? Como chão duro, ou como terra boa? (286) Que faz ele dos talentos recebidos? (287) Jesus e a presença do Reino neste mundo estão secretamente no coração das parábolas. É preciso entrar no Reino, quer dizer, tornar-se discípulo de Cristo, para «conhecer os mistérios do Reino dos céus» (Mt 13, 11). Para os que ficam «fora» (Mc 4, 11), tudo permanece enigmático (288).

OS SINAIS DO REINO DE DEUS

  1. Jesus acompanha as suas palavras com numerosos «milagres, prodígios e sinais» (At 2,22), os quais manifestam que o Reino está presente n’Ele. Comprovam que Ele é o Messias anunciado (289).

 

  1. Os sinais realizados por Jesus testemunham que o Pai O enviou (290). Convidam a crer n’Ele (291). Aos que se Lhe dirigem com fé, concede-lhes o que pedem (292). Assim, os milagres fortificam a fé n’Aquele que faz as obras do seu Pai: testemunham que Ele é o Filho de Deus (293). Mas também podem ser «ocasião de queda» (294). Eles não pretendem satisfazer a curiosidade nem desejos mágicos. Apesar de os seus milagres serem tão evidentes, Jesus é rejeitado por alguns (295); chega mesmo a ser acusado de agir pelo poder dos demónios (296).

 

  1. Ao libertar certos homens dos males terrenos da fome (297), da injustiça (298) da doença e da morte (299) – Jesus realizou sinais messiânicos; no entanto, Ele não veio para abolir todos os males deste mundo (300), mas para libertar os homens da mais grave das escravidões, a do pecado (301), que os impede de realizar a sua vocação de filhos de Deus e é causa de todas as servidões humanas.

 

  1. A vinda do Reino de Deus é a derrota do reino de Satanás (302): «Se é pelo Espírito de Deus que Eu expulso os demónios, então é porque o Reino de Deus chegou até vós» (Mt 12, 28). Os exorcismos de Jesus libertam os homens do poder dos demónios (303). E antecipam a grande vitória de Jesus sobre «o príncipe deste mundo» (304). É pela cruz de Cristo que o Reino de Deus vai ser definitivamente estabelecido: «Regnavit a ligno Deus Deus reinou desde o madeiro» (305).

«AS CHAVES DO REINO»

  1. Desde o princípio da sua vida pública, Jesus escolheu alguns homens, em número de doze, para andarem com Ele e participarem na sua missão

(306). Deu-lhes parte na sua autoridade «e enviou-os a pregar o Reino de Deus e a fazer curas» (Lc 9, 2). Estes homens ficam para sempre associados ao Reino de Cristo, porque, por meio deles, Jesus Cristo dirige a Igreja:

«Eu disponho, a vosso favor, do Reino, como meu Pai dispõe dele a meu favor, a fim de que comais e bebais à minha mesa, no meu Reino. E sentar-vos-eis em tronos, a julgar as doze tribos de Israel» (Lc 22, 29-30).

  1. No colégio dos Doze, Simão Pedro ocupa o primeiro lugar (307). Jesus confiou-lhe uma missão única. Graças a uma revelação vinda do Pai, Pedro confessara: «Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo» (Mt 16, 16). E nosso Senhor declarou-lhe então: «Tu és Pedro: sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela» (Mt 16, 18). Cristo, «pedra viva» (308), garante à sua Igreja, edificada sobre Pedro, a vitória sobre os poderes da morte. Pedro, graças à fé que confessou, permanecerá o rochedo inabalável da Igreja. Terá a missão de defender esta fé para que nunca desfaleça e de nela confirmar os seus irmãos (309).

 

  1. Jesus confiou a Pedro uma autoridade específica: «Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que desligares na terra será desligado nos céus» (Mt 16, 19). O «poder das chaves» designa a autoridade para governar a Casa de Deus, que é a Igreja. Jesus, o «bom Pastor» (Jo 10, 11), confirmou este cargo depois da sua ressurreição: «Apascenta as minhas ovelhas» (Jo 21, 15-17). O poder de «ligar e desligar» significa a autoridade para absolver os pecados, pronunciar juízos doutrinais e tomar decisões disciplinares na Igreja. Jesus confiou esta autoridade à Igreja pelo ministério dos Apóstolos e particularmente pelo de Pedro, o único a quem confiou explicitamente as chaves do Reino.

UM ANTEGOZO DO REINO: A TRANSFIGURAÇÃO

  1. A partir do dia em que Pedro confessou que Jesus era o Cristo, Filho do Deus vivo, o Mestre «começou a explicar aos seus discípulos que tinha de ir a Jerusalém e lá sofrer […], que tinha de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia» (Mt 16, 21). Pedro rejeita este anúnc io e os outros também não o entendem (312). É neste contexto que se situa o episódio misterioso da transfiguração de Jesus (313), no cimo duma alta montanha, perante três testemunhas por Ele escolhidas: Pedro, Tiago e João. O rosto e as vestes de Jesus tornaram-se fulgurantes de luz, Moisés e Elias aparecem, «e falam da sua morte, que ia consumar-se em Jerusalém» (Lc 9, 31). Uma nuvem envolve-os e uma voz do céu diz: «Este é o meu Filho predile to: escutai-O» (Lc 9, 35).
  1. Por um momento, Jesus mostra a sua glória divina, confirmando assim a confissão de Pedro. Mostra também que, para «entrar na sua glória» ( Lc 24, 26), tem de passar pela cruz em Jerusalém. Moisés e Elias tinham visto a glória de Deus sobre a montanha; a Lei e os Profetas tinham anunciado os sofrimentos do Messias (314). A paixão de Jesus é da vontade do Pai: o Filho age como Servo de Deus (315). A nuvem indica a presença do Espírito Santo: «Tota Trinitas apparuit: Pater in voce; Filius in homine; Spiritus in nube clara – Apareceu toda a Trindade: o Pai na voz; o Filho na humanidade; o Espírito Santo na nuvem luminosa» (316):

«Transfiguraste-Te sobre a montanha e, na medida em que disso eram capazes, os teus discípulos contemplaram a tua glória, ó Cristo Deus; para que, quando Te vissem crucificado, compreendessem que a tua paixão era voluntária, e anunciassem ao mundo que Tu és verdadeiramente a irradiação do Pai» (317).

  1. No limiar da vida pública, o baptismo; no limiar da Páscoa, a transfiguração. Pelo baptismo de Jesus «declaratum fuit mysterium primae regenerationis – foi declarado o mistério da (nossa) primeira regeneração»

 

– o nosso Baptismo; e a transfiguração «est sacramentum secundae regenerationis – é o sacramento da (nossa) segunda regeneração» – a nossa própria ressurreição (3 18). Desde agora, nós participamos na ressurreição do Senhor pelo Espírito Santo que atua nos sacramentos do Corpo de Cristo. A transfiguração dá -nos um antegozo da vinda gloriosa de Cristo, «que transfigurará o nosso corpo miserável para o conformar com o seu corpo glorioso» (Fl 3, 21). Mas lembra-nos também que temos de passar por muitas tribulações para entrar no Reino de Deus» (A t 14, 22):

«Era isso que Pedro ainda não tinha compreendido, quando manifestava o desejo de ficar com Cristo no cimo da montanha (319). – Isso, Ele to reservou, Pedro, para depois da morte. Mas agora, Ele próprio te diz: Desce para sofrer na Terra, para servir na Terra, para ser desprezado e crucificado na Terra. A Vida desce para se fazer matar: o Pão desce para passar fome; o Caminho desce para se cansar de andar; a Fonte desce para ter sede; – e tu recusas-te a sofrer?» (320).

A SUBIDA DE JESUS PARA JERUSALÉM

  1. «Ora, como se aproximavam os dias de Jesus ser levado deste mundo, Ele tomou a firme resolução de Se dirigir a Je rusalém» (Lc 9, 51) (321). Por esta decisão, indicava que subia para Jerusalém pronto para lá morrer. Já por três vezes tinha anunciado a sua paixão e a sua ressurreição (322). E ao dirigir-Se para Jerusalém, declara: «não se admite que um profeta morra fo ra de Jerusalém» (Lc 13, 33).
  1. Jesus recorda o martírio dos profetas que tinham sido entregues à morte em Jerusalém (323). No entanto, continua a convidar Jerusalém a reunir -se à sua volta: «Quantas vezes Eu quis agrupar os teus filhos como a galinha junta os seus pintainhos sob as asas!… Mas vós não quisestes» (Mt 23, 37b). Quando já avista Jerusalém, chora sobre ela (324) e exprime, uma vez mais, o desejo do seu coração: «Se neste dia também tu tivesses conhecido o que te pode trazer a paz! Mas agora isto está oculto aos teus olhos» (Lc 19, 42).

A ENTRADA MESSIÂNICA DE JESUS EM JERUSALÉM

  1. Como vai Jerusalém acolher o seu Messias? Embora tenha sempre evitado as tentativas populares de O fazerem rei (325), Jesus escolheu o momento e preparou os pormenores da sua entrada messiânica na cidade de «David, seu pai» (Lc 1, 32) (326). E é aclamado como filho de David e como aquele que traz a salvação («Hosa na» quer dizer «então salva!», «dá a salvação»). Ora, o «rei da glória» ( Sl 24, 7-10) entra na «sua cidade», «montado num jumento» (Zc 9, 9). Não conquista a filha de Sião, figura da sua Igreja, nem pela astúcia nem pela violência, mas pela humildade que dá testemunho da verdade (327). Por isso é que, naquele dia, os súbditos do seu Reino, são as criança s (328) e os «pobres de Deus», que O aclamam, tal como os anjos O tinham anunciado aos pastores (329). A aclamação deles: «Bendito o que vem em nome do Senhor» (Sl 118, 26) é retomada pela Igreja no «Sanctus» da Liturgia Eucarística, a abrir o memorial da Páscoa do Senhor.

 

  1. A entrada de Jesus em Jerusalém manifesta a vinda do Reino que o Rei-Messias vai realizar pela Páscoa da sua morte e da sua ressurreição. É com a sua celebração, no Domingo de Ramos, que a Liturgia da Igreja começa a Semana Santa.

Resumindo:

  1. «Toda a vida de Cristo foi um contínuo ensinamento: os seus silêncios, os seus milagres, os seus gestos, a sua oração, o seu amor pelo homem, a sua predileção pelos pequenos e pelos pobres, a aceitação do sacrifício total na cruz pela redenção do mundo, a sua ressurreição tudo é a tuação da sua palavra e cumprimento da Revelação» ( 330).

 

  1. Os discípulos de Cristo devem conformar-se com Ele até que Ele Se forme neles (331), «Por isso, somos assumidos nos mistérios da sua vida, configurados com Ele, com Ele mortos e ressuscitados, até que reinemos com Ele» (332).
  1. Pastor ou mago, ninguém pode atingir a Deus neste mundo senão ajoelhando diante do presépio de Belém e adorando -O oculto na fraqueza duma criança.

 

  1. Pela sua submissão a Mari a e a José, assim como pelo seu trabalho humilde em Nazaré durante longos anos, Jesus dá -nos o exemplo da santidade na vida quotidiana da família e do trabalho.

 

  1. Desde o princípio da sua vida pública, desde o seu baptismo, Jesus é o «Servo» inteiramente consagrado à obra redentora, que consumará pelo «baptismo» da sua paixão.

 

  1. A tentação no deserto mostra Jesus como Messias humilde, que triunfa de Satanás pela total adesão ao desígnio de salvação querido pelo Pai.

 

  1. O Reino dos céus foi inaugurado na terra por Cristo, e resplandece para os homens na palavra, nas obras e na presença de Cristo» (333). A Igreja é o gérmen e o princípio deste Reino. As suas chaves são confiadas a Pedro.
  1. 568. A transfiguração de Cristo te m por fim fortalecer a fé dos Apóstolos em vista da paixão: a subida à «alta montanha» prepara a subida ao Calvário. Cristo, cabeça da Igreja, manifesta o que o seu Corpo contém e irradia nos sacramentos: «a esperança da Glória» (Cl 1, 27) (334).
  1. Jesus subiu voluntariamente a Jerusalém, sabendo perfeitamente que ali ia morrer de morte violenta, por causa da oposição dos pecadores (335).

 

  1. A entrada de Jesus em Jerusalém manifesta a vinda do Reino, que o Rei-Messias, acolhido na cidade pelas crianças e pelos humildes de corarão, vai realizar pela Páscoa da sua morte e ressurreição.

ARTIGO 4

«JESUS CRISTO PADECEU SOB PÔNCIO PILATOS FOI CRUCIFICADO, MORTO E SEPULTADO»

  1. O mistério pascal da cruz e ressurreição de Cristo está no centro da Boa – Nova que os Apóstolos, e depois deles a Igreja, devem anunciar ao mundo. O desígnio salvífico de Deus cumpriu-se de «una vez por todas» (Heb 9, 26) pela morte redentora do seu Filho Jesus Cristo.

 

  1. A Igreja permanece fiel à «interpretação de todas as Escrituras» dada pelo próprio Jesus, tanto antes como depois da sua Páscoa (336) «Não tinha

o Messias de sofrer tudo isto, para entrar na sua glória?» (Lc 24, 26). Os sofrimentos de Jesus tomaram a sua forma histórica concreta, pelo facto de Ele ter sido «rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas» (Mc 8, 31), que «O entregaram aos pagãos para ser escarnecido, flagelado e crucificado» (Mt 20, 19).

  1. A fé pode, portanto, esforçar -se por investigar as circunstâncias da morte de Jesus, fielmente transmitidas pelos evangelhos (337) e esclarecidas por outras fontes históricas, para melhor compreender o sentido da redenção.

PARÁGRAFO 1

JESUS E ISRAEL

  1. Desde o princípio do ministério público de Jesus, fariseus e partidários de Herodes, com sacerdotes e escribas, puseram-se de acordo para lhe dar a morte (338). Por alguns dos seus atos (expulsões de demónios (339); perdão dos pecados (340) curas em dia de sábado (341); interpretação original dos preceitos de pureza legal (342): trato familiar com publicanos e pecadores públicos (343), Jesus pareceu a alguns, mal intencionados, suspeito de possessão diabólica (344). Foi acusado de blasfémia (345) e de falso profetismo (346), crimes religiosos que a Lei castigava com a pena de morte por apedrejamento (347).

 

  1. Muitas atitudes e palavras de Jesus foram, portanto, «sinal de contradição» (348) para as autoridades religiosas de Jerusalém, a que m o Evangelho de São João muitas vezes chama simplesmente «os Judeus» (349), mais ainda do que para o comum do Povo de Deus (350). Sem dúvida que as suas relações com os fariseus não foram unicamente polémicas: são fariseus que O previnem do perigo que corre (351). Jesus louva alguns de entre eles, como o escriba de Mc 12, 34, e em várias ocasiões come em casa de fariseus (352). Jesus confirma doutrinas partilhadas por esta elite religiosa do povo de Deus: a ressurreição dos mortos (353) formas de piedade (esmola, jejum e oração (354)) e o hábito de se dirigir a Deus como Pai, o carácter central do mandamento do amor de Deus e do próximo (355).

 

  1. Aos olhos de muitos em Israel, parece que Jesus procede contra as instituições essenciais do Povo eleito:

– a submissão à Lei, na totalidade dos seus preceitos escritos e, para os fariseus, na interpretação da tradição oral;

– a centralidade do templo de Jerusalém, como lugar santo em que Deus habita de maneira privilegiada;

– a fé no Deus único, cuja glória nenhu m homem pode partilhar.

  1. Jesus e a Lei
  1. Jesus fez uma solene advertência no início do sermão da montanha, ao apresentar a Lei dada por Deus no Sinai, quando da primeira Aliança, à luz da graça da Nova Aliança:

«Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogá -los, mas levá-los à perfeição. Em verdade vos digo: Antes que passem o céu e a Terra, não passará da Lei a mais pequena letra ou o mais pequeno sinal, sem que tudo se cumpra. Portanto, se alguém transgredir um só destes mandamento s, por mais pequeno que seja, e ensinar assim aos homens, será o menor no Reino dos céus. Mas aquele que os praticar e ensinar, será grande no Reino dos céus» (Mt 5, 17-19).

  1. Jesus, o Messias de Israel e, portanto, o maior no Reino dos céus, fazia questão de cumprir a Lei, executando-a integralmente até nos mais pequenos preceitos, segundo as suas próprias palavras. Foi, mesmo, o único a poder fazê-lo perfeitamente (356). Os Judeus, segundo a sua própria confissão, não puderam nunca cumprir integralmente a Lei sem violação do mínimo preceito (357). Por isso é que, em cada festa anual da Expiação, os filhos de Israel pediam a Deus perdão pelas suas transgressões da Lei. Com efeito, a Lei constitui um todo e, como lembra São Tiago, «quem observa toda a Lei, mas falta num só mandamento, torna -se réu de todos os outros» (Tg 2, 10) (358).

 

  1. Este princípio da integralidade da observância da Lei, não só na letra mas também no espírito, era caro aos fariseus. Tomando-o extensivo a Israel, conduziram muitos judeus do tempo de Jesus a um zelo religioso extremo (359). E um tal zelo, se não se ficasse por uma casuística «hipócrita» (360), com certeza que prepararia o povo para esta inaudita intervenção de Deus, que será o cumprimento perfeito da Lei pelo único just o representante de todos os pecadores (361).

 

  1. O cumprimento perfeito da Lei só podia ser obra do divino Legislador, nascido sujeito à Lei na pessoa do Filho (362). Em Jesus, a Lei já não aparece gravada em tábuas de pedra, mas «no íntimo do coração» (Jr 31, 33) do Servo, o qual, proclamando «fielmente o direito» (Is 42, 3), se tornou «a aliança do povo» (Is 42, 6). Jesus cumpriu a Lei até ao ponto de tomar sobre Si «a maldição da Lei» (363) em que incorrem aqueles que não «praticam todos os preceitos da Lei» (364); porque «a morte de Cristo foi para remir as faltas cometidas durante a primeira Aliança» (Heb 9, 15).
  1. Jesus apareceu aos olhos dos Judeus e dos seus chefes espirituais como um «rabbi» (365). Muitas vezes argumentou, no quadro da interpretação rabínica da Lei (366). Mas, ao mesmo tempo, Jesus tinha forçosamente de Se confrontar com os doutores da Lei porque não Se contentava com propor a sua interpretação a par das deles: «ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas» (Mt 7, 28-29). N’Ele, era a própria Palavra de Deus, que Se fizera ouvir no Sinai, para dar a Moisés a Lei escrita, que de novo Se fazia ouvir sobre a montanha das bem-aventuranças (367). Esta Palavra de Deus não aboliu a Lei, mas cumpriu-a, ao fornecer, de modo divino, a sua interpretação última: «Ouvistes que foi dito aos antigos […] Eu, porém, digo – vos» (Mt 5, 33-34). Com esta mesma autoridade divina, desaprova certas «tradições humanas» (368) dos fariseus, que «anulam a Palavra de Deus» (369).

 

  1. Indo mais longe, Jesus cumpriu a lei sobre a pureza dos alimentos, tão importante na vida quotidiana judaica, explicando o seu sentido «pedagógico» (370) por uma interpretação divina: «Não há nada fora do homem que, ao entrar nele, o possa tornar impuro […] – e assim declarava puros todos os alimentos – […]. O que sai do homem é que o toma impuro. Pois, do interior do coração dos homens é que saem os pensamentos perversos» (Mc 7, 18-21). Proporcionando, com autoridade divina, a interpretação definitiva da Lei, Jesu s colocou-Se numa situação de confronto com certos doutores da Lei, que não aceitavam a sua interpretação, muito embora garantida pelos sinais divinos que a acompanhavam (371). Isto vale sobretudo para a questão do sábado: Jesus lembra, e muitas vezes com argumentos rabínicos (372), que o repouso sabático não é violado pelo serviço de Deus (373) ou do próximo (374) que as suas curas realizam.
  1. Jesus e o templo
  1. Jesus, como antes d’Ele os profetas, professou pelo templo de Jerusalém o mais profundo respeito. Ali foi apresentado por José e Maria, quarenta dias depois do seu nascimento (375). Na idade de doze anos, decidiu ficar no templo para lembrar aos seus pais que tinha de Se ocupar das coisas de seu Pai (376). Ao templo subiu todos os anos, ao menos pela Páscoa, durante a vida oculta (377). O seu próprio ministério público foi ritmado pelas peregrinações a Jerusalém nas grandes festas judaicas (378).

 

  1. Jesus subiu ao templo como quem sobe ao lugar privilegiado de encontro com Deus. O templo é para Ele a casa do seu Pai, uma casa de oração, e indigna -Se com o facto de o átrio exterior se ter tornado lugar de negócio (379). Se expulsa os vendilhões do temp lo é pelo amor zeloso a seu Pai: «Não façais da casa do meu Pai casa de comércio». «Os discípulos recordaram-se de que estava escrito: “O zelo pela tua casa devorar-me-

á” (Sl 69, 10)» (Jo 2, 16-17). Depois da ressurreição, os Apóstolos guardaram para com o templo um respeito religioso (380).

  1. No entanto, nas vésperas da sua paixão, Jesus anunciou a ruína deste esplêndido edifício, do qual não ficaria pedra sobre pedra (381). Há aqui o anúncio dum sinal dos últimos tempos, que vão iniciar -se com a sua própria Páscoa (382). Mas esta profecia pôde ser referida de modo deturpado por falsas testemunhas, quando do interrogatório a que Jesus foi sujeito em casa do sumo-sacerdote (383) e ser-Lhe lançada em rosto, como injúria, quando agonizava, pregado na cruz (384).

 

  1. Longe de ter sido contra o templo (385) onde proclamou o essencial da sua doutrina (386), Jesus quis pagar o imposto do templo, associando a Si Pedro (387), que Ele acabara de estabelecer como pedra basilar da sua Igreja futura (388). Mais ainda: identificou-Se com o templo, apresentando-Se como a morada definitiva de Deus entre os homens (389). Por isso é que a sua entrega à morte corporal (390) prenuncia a destruição do templo, a qual vai assinalar a entrada numa nova idade da história da salva ção: «Vai chegar a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai» ( Jo 4, 21) (391).

III. Jesus e a fé de Israel no Deus único e salvador

  1. Se a Lei e o templo de Jerusalém puderam ser ocasião de «contradição» (392) entre Jesus e as autoridades religiosas de Israel, o seu papel na redenção dos pecados, obra divina por excelência, foi, para essas autoridades, a verdadeira pedra de escândalo (393).

 

  1. Jesus escandalizou os fariseus por comer com os publicanos e os pecadores (394) tão familiarmente como com eles (395). Contra aqueles «que se consideravam justos e desprezavam os demais» (Lc 18, 9) (396) Jesus afirmou: «Eu não vim chamar os justos, vim chamar os pecadores, para que se arrependam» (Lc 5, 32). E foi mais longe, afirmando, diante dos fariseus, que, sendo o pecado universal (397), cegam-se a si próprios (398) aqueles que pretendem não precisar de salvação.

 

  1. Jesus escandalizou, sobretudo, por ter identificado a sua conduta misericordiosa para com os pecadores com a atitude do pró prio Deus a respeito dos mesmos (399). Chegou, até, a dar a entender que, sentando-Se à mesa dos pecadores (400), os admitia no banquete messiânico (401). Mas foi muito particularmente ao perdoar os pecados que Jesus colocou as autoridades religiosas de Israel perante um dilema. É que, como essas autoridades justamente dizem, apavoradas, «só Deus pode perdoar os pecados» (Mc 2, 7). Jesus ao perdoar os pecados, ou blasfema por ser um

homem que se faz igual a Deus (402), ou diz a verdade e a Sua pessoa torna então presente e revela o nome de Deus (403).

  1. Só a identidade divina da pessoa de Jesus é que pode justificar uma exigência tão absoluta como esta: «Quem não está comigo, está contra Mim» (Mt 12, 30); o mesmo se diga de quando afirma ser «mais que Jonas,…

 

mais que Salomão» (Mt 12, 41-42), «mais que o templo» (404); de quando lembra, a respeito de si próprio, que David chamou ao Messias o seu Senhor (405); de quando afirma: «Antes de Abraão existir, “Eu sou”» (Jo 8, 58); e ainda mais: «Eu e o Pai somos um» (Jo 10, 30).

 

  1. Jesus pediu às autoridades religiosas de Jerusalém que acreditassem n’Ele, por causa das obras do seu Pai que Ele fazia (406). Mas tal ato de fé tinha de passar por uma misteriosa morte para si mesmo, a qual desse lugar a um novo «nascimento do Alto» (407), por atracção da graça divina (408). Tal exigência de conversão, face a um tão surpreendente cumprimento das promessas (409), permite compreender o trágico desdém do Sinédrio, ao sentenciar que Jesus merecia a morte como blasfemo (410). Os membros do Sinédrio agiam assim, ao mesmo tempo por «ignorância» (411) e pelo «endurecimento» (412) da sua «incredulidade» (413).

Resumindo:

  1. Jesus não aboliu a Lei do Sinai, mas cumpriu -a (414) com tal perfeição (415) que revelou o sentido ú ltimo dela (416) e resgatou as transgressões contra ela cometidas ( 417).

 

  1. Jesus venerou o templo, subindo a ele nas festas judaicas de peregrinação e amou com amor zeloso esta morada de Deus entre os homens. O templo prefigura o seu mistério. Quando anuncia a sua destruição, fá -lo como revelação da sua própria morte e da entrada numa nova idade da história da salvação, em que o seu Corpo será o templo definitivo.

 

  1. Jesus praticou atos, como o perdão dos pecados, que O manifestaram como sendo o própr io Deus salvador (418). Alguns judeus, que, não reconhecendo o Deus feito homem (419) viam n’Ele «um homem que se faz Deus» (420), julgaram-n’O como blasfemo.

PARÁGRAFO 2

JESUS MORREU CRUCIFICADO

  1. O processo de Jesus

DIVISÕES ENTRE AS AUTORIDADES JUDAICA S A RESPEITO DE JESUS

  1. Entre as autoridades religiosas de Jerusalém, não somente se encontravam o fariseu Nicodemos (421) e o notável José de Arimateia, discípulos ocultos de Jesus (422), mas também, durante muito tempo, houve dissensões a respeito d’E le (423) ao ponto de, na própria véspera da paixão. João poder dizer deles que «um bom número acreditou n’ Ele», embora de modo assaz imperfeito (Jo 12, 42); o que não é nada de admirar, tendo -se presente que, no dia seguinte ao de Pentecostes, «um grande número de sacerdotes se submetia à fé» (At 6, 7) e «alguns homens do partido dos fariseus tinham abraçado a fé» ( At 15, 5), de tal modo que São Tiago podia dizer a São Paulo que «muitos milhares entre os judeus abraçaram a fé e todos têm zelo pela Lei» (At 21, 20).

 

  1. As autoridades religiosas de Jerusalém não foram unânimes na atitude a adoptar a respeito de Jesus (424). Os fariseus ameaçaram de excomunhão aqueles que O seguissem (425). Aos que temiam que «todos acreditassem n’Ele e os romanos viessem destruir o templo e a nação» (Jo 11, 48), o sumo sacerdote Caifás propôs, profetizando: «E do vosso interesse que morra um só homem pelo povo e não pereça a nação inteira» ( Jo 11, 50). O Sinédrio, tendo declarado Jesus «réu de morte» (426) como blasfemo, mas tendo perdido o direito de condenar à morte fosse quem fosse (427), entregou Jesus aos romanos, acusando-O de revolta política (428) — o que O colocava em pé de igualdade com que Barrabás, acusado de «sedição» (Lc 23, 19). São também de carácter político as ameaças que os sumos-sacerdotes fazem a Pilatos, pressionando-o a condenar Jesus à morte (429).

OS JUDEUS NÃO SÃO COLECTIVAMENTE RESPONSÁVEIS PELA MORTE DE JESUS

  1. Tendo em conta a complexidade histórica do pr ocesso de Jesus, manifestada nas narrativas evangélicas, e qualquer que tenha sido o pecado pessoal dos intervenientes no processo (Judas, o Sinédrio, Pilatos), que só Deus conhece, não se pode atribuir a responsabilidade do mesmo ao conjunto dos judeus de Jerusalém, apesar da gritaria duma multidão manipulada (430) e das censuras globais contidas nos apelos à conversão, depois do Pentecostes (431). O próprio Jesus, perdoando na cruz (432) e Pedro a seu exemplo, apelaram para «a ignorância» (433) dos judeus de Jerusalém e mesmo dos seus chefes. Menos ainda é possível estender a responsabilidade ao conjunto dos judeus no espaço e no tempo, a partir do grito do povo: «Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos» (Mt 27, 25), que é uma fórmula de r atificação (434):

Por isso, a Igreja declarou no II Concílio do Vaticano: «Não se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na sua paixão se perpetrou. […] Nem por isso os judeus devem ser apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa se concluísse da Sagrada Escritura» (435).

TODOS OS PECADORES FORAM AUTORES DA PAIXÃO DE CRISTO

  1. A Igreja, no magistério da sua fé e no testemunho dos seus santos, nunca esqueceu que «os pecadores é que foram os autores, e como que os instrumentos, de todos os sofrimentos que o divino Redentor suportou» (436). Partindo do princípio de que os nossos pecados atingem Cristo em pessoa (437), a Igreja não hesita em imputar aos cristãos a mais grave responsabilidade no suplício de Jesus, responsabilidade que eles muitas vezes imputaram unicamente aos judeus:

«Devemos ter como culpados deste horrível crime os que continuam a recair nos seus pecados. Porque foram os nossos crimes que fizeram nosso Senhor Jesus Cristo suportar o suplício da cruz, é evidente que aqueles que mergulham na desordem e no mal crucificam de novo em seu coração, tanto quanto deles depende, o Filho de Deus, pelos seus pecados, expondo-O à ignomínia. E temos de reconhecer: o nosso crime, neste caso, é maior que o dos judeus. Porque eles, como afirma o Apóstolo, «se tivessem conhecido a Sabedoria de Deus, não leriam crucificado o Senhor da glória» (1 Cor 2, 8); ao passo que nós, pelo contrário, fazemos profissão de O con hecer: e, quando O renegamos pelos nossos atos, de certo modo levantamos contra Ele as nossas mãos assassinas» (438).

«Não foram os demónios que O pregaram na cruz, mas tu com eles O crucificaste, e ainda agora O crucificas quando te deleitas nos vícios e pecados» (439).

  1. A morte redentora de Cristo no desígnio divino de salvação

«JESUS ENTREGUE, SEGUNDO O DESÍGNIO DETERMINADO DE DEUS»

  1. A morte violenta de Jesus não foi fruto do acaso, nem coincidência infeliz de circunstâncias várias. Faz parte do mistério do desígnio de Deus, como Pedro explica aos judeus de Jerusalém, logo no seu primeiro discurso no dia de Pentecostes: «Depois de entregue, segundo o desígnio determinado e a previsão de Deus» (At 2, 23). Esta linguagem bíblica não significa que os que «entregaram Jesus» (440) foram simples atores passivos dum drama previamente escrito por Deus.
  1. A Deus, todos os momentos do tempo estão presentes na sua atualidade. Por isso, Ele estabelece o seu desígnio eterno de «predestinação», incluindo nele a resposta livre de cada homem à sua graça: «Na verdade, Herodes e Pôncio Pilatos uniram -se nesta cidade, com as nações pagãs e os povos d e Israel, contra o vosso santo Servo Jesus, a quem ungistes (441). Cumpriram assim tudo o que o vosso poder e os vossos desígnios tinham de antemão decidido que se realizasse» (At 4, 27-28). Deus permitiu os atos resultantes da sua cegueira (442), como fim de levar a cabo o seu plano de salvação (443).

«MORTO PELOS NOSSOS PECADOS, SEGUNDO AS ESCRITURAS»

  1. Este plano divino de salvação, pela entrega à morte do «Servo, o Justo»

 

(444), tinha sido de antemão anunciado na Escritura como um mistério de redenção universal, quer dizer, de resgate que liberta os homens da escravidão do pecado (445) São Paulo professa, numa confissão de fé que diz ter «recebido» (446), que «Cristo morreu pelos nossos pecados segundo as Escrituras» (1 Cor 15, 3) (447). A morte redentora de Jesus deu cumprimento sobretudo à profecia do Servo sofredor (448). O próprio Jesus apresentou o sentido da sua vida e da sua morte à luz do Servo sofredor (449). Após a sua ressurreição, deu esta interpretação das Escrituras aos discípulos de Emaús (450) e depois aos próprios Apóstolos (451).

«POR NÓS, DEUS FÊ  -LO PECADO»

  1. Consequentemente, Pedro pôde formular assim a fé apostólica no plano divino da salvação: «fostes resgatados da vã maneira de viver herdada dos vossos pais, pelo sangue precioso de Cristo, como de um cordeiro sem defeito nem mancha, predestinado antes da criação do mundo e manifestado nos últimos tempos por nossa causa» (1 Pe1, 18-20). Os pecados dos homens, que se seguiram ao pecado original, foram castigados com a morte (452). Enviando o seu próprio Filho na condição de escravo (453), que era a de uma humanidade decaída e votada à morte por causa do pecado (454), «a Cristo, que não conhecera o pecado, Deus fê -lo pecado por amor de nós, para que, em Cristo, nos tornássemos justos aos olhos de Deus» (2 Cor 5, 21).

 

  1. Jesus não conheceu a reprovação como se tivesse pecado pessoalmente

 

(455). Mas, no amor redentor que constantemente O unia ao Pai (456), assumiu-nos no afastamento do nosso pecado em relação a Deus a ponto de, na cruz, poder dizer em nosso nome: «Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?» (Mc 15, 34) (457). Tendo-O feito solidário conosco, pecadores, «Deus não poupou o seu próprio Filho, mas entregou -O para morrer por nós todos» (Rm 8, 32), para que fôssemos «re conciliados com Ele pela morte do seu Filho» (Rm 5, 10).

DEUS TOMA A INICIATIVA DO AMOR REDENTOR UNIVERSAL

  1. Entregando o seu Filho pelos nossos pecados, Deus manifesta que o seu plano sobre nós é um desígnio de amor benevolente, independente de qualquer mérito da nossa parte: «Nisto consiste o amor: não fomos nós que amámos a Deus, foi Deus que nos amou a nós e enviou o seu Filho como vítima de propiciação pelos nossos pecados» (1 Jo 4, 10) (458). «Deus prova assim o seu amor para conosco: Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores» (Rm 5, 8).

 

  1. Este amor é sem exclusão. Jesus lembrou -o ao terminar a parábola da ovelha perdida: «Assim, não é da vontade do meu Pai, que está nos céus, que se perca um só destes pequeninos» (Mt 18, 14). E afirma «dar a Sua vida em resgate pela multidão» (Mt 20, 28). Esta última expressão não é restritiva: simplesmente contrapõe o conjunto da humanidade à pessoa única do redentor, que Se entrega para a salvar (459). No seguimento dos Apóstolos

 

(460), a Igreja ensina que Cristo morreu por todos os homens, sem excepção: «Não há, não houve, nem haverá nenhum homem pelo qual Cristo não tenha sofrido» (461).

III. Cristo ofereceu-Se a Si mesmo ao Pai pelos nossos pecados

TODA A VIDA DE CRISTO É OBLAÇÃO AO PAI

  1. O Filho de Deus, «descido do céu, não para fazer a sua vontade mas a do seu Pai, que O enviou» (462), «diz, ao entrar no mundo: […] Eis-me aqui, […] ó Deus, para fazer a tua vontade. […] E em virtude dessa mesma vontade, é que nós fomos santificados, pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, feita de uma vez para sempre» (Heb 10, 5-10). Desde o primeiro instante da sua Encarnação, o Filho faz seu o plano divino de salvação, no desempenho da sua missão redentora: «O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou e realizar a sua obra» (Jo 4, 34). O sacrifício de Jesus «pelos pecados do mundo inteiro» (1 Jo 2, 2) é a expressão da sua comunhão amorosa com o Pai: «O Pai ama-Me, porque Eu dou a minha vida» (Jo 10, 17). «O mundo tem de saber que amo o Pai e procedo como o Pai Me ordenou» (Jo 14, 31).

 

  1. Este desejo de fazer seu o plano do amor de redenção do seu Pai, anima toda a vida de Jesus (463). A sua paixão redentora é a razão de ser da Encarnação: «Pai, salva -Me desta hora! Mas por causa disto, é que Eu cheguei a esta hora» (Jo 12, 27). «O cálice que o Pai Me deu, não havia de bebê-lo?» (Jo 18, 11). E ainda na cruz, antes de «tudo estar consumado» (Jo 19, 30), diz: «Tenho sede» (Jo 19, 28).

«O CORDEIRO QUE TIRA O PECADO DO MUNDO»

  1. Depois de ter aceitado dar-Lhe o baptismo como aos pecadores (464), João Baptista viu e mostrou em Jesus o «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo» (465). Manifestou deste modo que Jesus é, ao mesmo tempo, o Servo sofredor, que Se deixa levar ao matadouro sem abrir a boca (466), carregando os pecados das multidões (467), e o cordeiro pascal, símbolo da redenção de Israel na primeira Páscoa (468), Toda a vida de Cristo manifesta a sua missão: «servir e dar a vida como resgate pela multidão» (469).

JESUS PARTILHA LIVREMENTE O AMOR REDENTOR DO PAI

  1. Ao partilhar, no seu coração humano, o amor do Pai para com os homens, Jesus «amou-os até ao fim» (Jo 13, 1), «pois não há maior amor do que dar a vida por aqueles que se ama» (Jo 15, 13). Assim, no sofrimento e na morte, a sua humanidade tornou-se instrumento livre e perfeito do seu amor divino, que quer a salvação dos homens (470). Com efeito, Ele aceitou livremente a sua paixão e morte por amor do Pai e dos homens a quem o Pai quer salvar: «Ninguém Me tira a vida. Sou Eu que a dou espontaneamente» (Jo 10, 18). Daí, a liberdade soberana do Filho de Deus, quando Ele próprio vai ao encontro da morte (471).

NA CEIA, JESUS ANTECIPOU A OBLAÇÃO LIVRE DA SUA VIDA

  1. Jesus exprimiu de modo supremo a oblação livre de Si mesmo na refeição que tornou com os doze Apóstolos (472), na «noite em que foi entregue» (1 Cor 11, 23). Na véspera da sua paixão, quando ainda era livre, Jesus fez desta última Ceia com os Apóstolos o memorial da sua oblação voluntária ao Pai (473) para a salvação dos homens: «Isto é o meu Corpo, que vai ser entregue por vós» (Lc 22, 19). «Isto é o meu “Sangue da Aliança”, que vai ser derramado por uma multidão, para remissão dos pecados» (Mt 26, 28).

 

  1. A Eucaristia, que neste momento instituiu, será o «memorial» (474) do seu sacrifício. Jesus incluiu os Apóstolos na sua própria oferenda e pediu – lhes que a perpetuassem (475). Desse modo, instituiu os Apóstolos como sacerdotes da Nova Aliança: «Eu consagro-me por eles, para que também eles sejam consagrados na verdade» (Jo 17, 19) (476).

A AGONIA NO GETSÉMANI

  1. O cálice da Nova Aliança, que Jesus antecipou na Ceia, oferecendo -Se a Si mesmo (477), é aceite seguidamente por Jesus das mãos do Pai, na agonia no Getsémani (478), fazendo-Se «obediente até á morte» (Fl 2, 8) (479). Na sua oração, Jesus diz: «Meu Pai, se é possível, que se afaste de Mim este cálice […]» (Mt 26, 39). Exprime desse modo o horror que a morte

representa para a sua natureza humana. Com efeito, esta, como a nossa, está destinada à vida eterna. Mas, diferentemente da nossa, é perfeitamente isenta do pecado (480) que causa a morte (481). E, sobretudo, é assumida pela pessoa divina do «Príncipe da Vida» (482), do «Vivente» (483). Aceitando, com a sua vontade humana, que se faça a vontade do Pai (484) aceita a sua morte enquanto redentora, para «suportar os nossos pecados no seu corpo, no madeiro da cruz» (1 Pe 2, 24).

A MORTE DE CRISTO É O SACRIFÍCIO ÚNICO E DEFINITIVO

  1. A morte de Cristo é, ao mesmo tempo, o sacrifício pascal que realiza a redenção definitiva dos homens (485) por meio do «Cordeiro que tira o pecado do mundo» (486), e o sacrifício da Nova Aliança (487) que restabelece a comunhão entre o homem e Deus (488), reconciliando-o com Ele pelo «sangue derramado pela multidão, para a remissão dos pecados» (489).

 

  1. Este sacrifício de Cristo é único, leva à perfeição e ultrapassa todos os sacrifícios (490). Antes de mais, é um dom do próprio Deus Pai: é o Pai que entrega o seu Filho para nos reconciliar consigo (491). Ao mesmo tempo, é oblação do Filho de Deus feito homem, que livremente e por amor (492) oferece a sua vida (493) ao Pai pelo Espírito Santo (494) para reparar a nossa desobediência.

JESUS SUBSTITUI A NOSSA DESOBEDIÊNC IA PELA SUA OBEDIÊNCIA

  1. «Como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos» (Rm 5, 19). Pela sua obediência até à morte, Jesus realizou a a ção substitutiva do Servo sofredor, que oferece a sua vida como sacrifício de expiação, ao carregar com o pecado das multidões, que justifica carregando Ele próprio com as suas faltas (495). Jesus reparou as nossas faltas e satisfez ao Pai pelos nossos pecados (496).

NA CRUZ, JESUS CONSUMA O SEU SACRIFÍCIO

  1. É o «amor até ao fim» (497) que confere ao sacrifício de Cristo o valor de redenção e reparação, de expiação e satisfação. Ele conheceu -nos e amou-nos a todos no oferecimento da sua vida (498). «O amor de Cristo nos pressiona, ao pensarmos que um só morreu por todos e que todos, portanto, morreram» (2 Cor 5, 14). Nenhum homem, ainda que fosse o mais santo, estava em condições de tornar sobre si os pecados de todos os homens e de se oferecer em sacrifício por todos. A existência, em Cristo, da pessoa divina

do Filho, que ultrapassa e ao mesmo tempo abrange todas as pessoas humanas e O constitui cabeça de toda a humanidade, é que torna possível o seu sacrifício redentor por todos.

  1. «Sua sanctissima passione in ligno crucis nobis justificationem meruit

 

– Pela sua santíssima paixão no madeiro da cruz, Ele mereceu-nos a justificação» – ensina o Concílio de Trento (499), sublinhando o carácter único do sacrifício de Cristo como fonte de salvação eterna (500). E a Igreja venera a Cruz cantando: «O crux, ave, spes unica! – Avé, ó cruz, esperança única!» (501).

A NOSSA PARTICIPAÇÃO NO SACRIFÍCIO DE CRISTO

  1. A cruz é o único sacrifício de Cristo, mediador único entre Deus e os homens (502). Mas porque, na sua pessoa divina encarnada. «Ele Se uniu, de certo modo, a cada homem» (503), «a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal, por um modo só de Deus conhe cido» (504). Convida os discípulos a tomarem a sua cruz e a segui-Lo(505) porque sofreu por nós, deixando -nos o exemplo, para que sigamos os seus passos (506). De facto, quer associar ao seu sacrifício redentor aqueles mesmos que são os primeiros beneficiários (507). Isto realiza -se, em sumo grau, em sua Mãe, associada, mais intimamente do que ninguém, ao mistério do seu sofrimento redentor (508):

Há uma só escada verdadeira fora do paraíso; fora da cruz, não há outra escada por onde se suba ao céu» (509).

Resumindo:

  1. «Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras» (1 Cor 15, 3).

 

  1. A nossa salvação procede da iniciativa a morosa de Deus em nosso favor, pois «foi Ele que nos amou a nós e enviou o seu Filho como vítima de propiciação pelos nossos pecados» (1 Jo 4, 10). «Foi Deus que, em Cristo, reconciliou consigo o mundo» (2 Cor 5, 19).

 

  1. Jesus ofereceu-Se livremente para nossa salvação. Este dom, significa – o e realiza-o Ele, de antemão, durante a Ultimo Ceia: «Isto é o meu Corpo, que vai ser entregue por vós» (Lc 22, 19).

 

  1. Nisto consiste a redenção de Cristo: Ele «veio dar a sua vida em resgate pela multidão»(Mt 20, 2 8), quer dizer; veio «amuar os seus até ao

fim» (Jo 13, 1), para que fossem libertos da má conduta herdada dos seus pais (510).

  1. 623. Pela sua obediência amorosa ao Pai, «até d morte de cruz» (Fl 2, 8), Jesus cumpriu a missão expiatória (511) do Servo sofredor, que justifica as multidões, tomando sobre Si o peso das suas faltas (Is 53, 11) (512).

PARÁGRAFO 3

JESUS CRISTO FOI SEPULTADO

  1. «Pela graça de Deus, ele experimentou a morte, para proveito de todos» (Heb 2, 9). No seu plano de salvação, Deus dispôs que o seu Filho, não só «morresse pelos nossos pecados» (1 Cor 15, 3), mas também «saboreasse a morte», isto é, conhecesse o estado de morte, o estado de separação entre a sua alma e o seu corpo, durante o tempo compreendido entre o momento em que expirou na cruz e o momento em que ressuscitou. Este estado de Cristo morto é o mistério do sepulcro e da descida à mansão dos mortos. É o mistério do Sábado Santo, em que Cristo, depositado no túmulo (513), manifesta o repouso sabático de Deus (514) depois da realização (515) da salvação dos homens, que pacifica todo o universo (516).

O CORPO DE CRISTO NO SEPULCRO

  1. A permanência do corpo de Cristo no túmulo constitui o laço real entre o estado passível de Cristo antes da Páscoa e o seu estado glorioso atual de ressuscitado. É a mesma pessoa do «Vivente» que pode dizer: «Estive morto e eis-Me vivo pelos séculos dos séculos» ( Ap 1, 18):

«É este o mistério do desígnio de Deus àcerca da morte e da ressurreição dos mortos: se Ele não impediu que a morte separasse a alma do corpo, segundo a ordem necessária da natureza: mas juntou-os de novo um ao outro pela ressurreição, a fim de ser Ele próprio na sua pessoa o ponto de encontro da morte e da vida, suspendendo em Si a decomposição da natureza produzida pela morte e tornando-Se, Ele próprio, princípio de reunião para as partes separadas» (517).

  1. Uma vez que o «Príncipe da Vida», a quem deram a morte (518), é precisamente o mesmo «Vivente que ressuscitou» (519), é forçoso que a pessoa divina do Filho de Deus tenha continuado a assumir a alma e o corpo, separados um do outro pela morte:

«Embora Cristo, enquanto homem tenha sofrido a morte e a sua santa alma tenha sido separada do seu corpo imaculado, nem por isso a divindade se

separou, de nenhum modo, nem da alma nem do corpo: e nem por isso a Pessoa única foi dividida em duas. Tanto o corpo como a alma tiveram existência simultânea, desde o início, na Pessoa do Verbo; e, apesar de na morte terem sido separados, nenhum dos dois deixou de subsistir na Pessoa única d o Verbo» (520).

«NÃO DEIXAREIS O VOSSO SANTO SOFRER A CORRUPÇÃO»

  1. A morte de Cristo foi uma verdadeira morte, na medida em que pôs fim à sua existência humana terrena. Mas por causa da união que a Pessoa do Filho manteve com o seu corpo, este não se tornou um despojo mortal como os outros, porque «não era possível que Ele ficasse sob o domínio» da morte (At 2, 24) e, por isso, «o poder divino preservou o corpo de Cristo da corrupção» (521). De Cristo pode dizer -se ao mesmo tempo: «Foi cortado da terra dos vivos» (Is 53, 8) e: «A minha carne repousará na esperança, porque Tu não abandonarás a minha alma na mansão dos mortos, nem deixarás que o teu santo conheça a corrupção» (A t 2, 26-27) (522). A ressurreição de Jesus «ao terceiro dia» (1 Cor 15, 4; Lc 24, 46) (523) era disso sinal, até porque se julgava que a corrupção começava a manifestar -se a partir do quarto dia (524).

«SEPULTADOS COM CRISTO…»

  1. O Baptismo, cujo sinal original e pleno é a imersão, significa eficazmente a descida ao túmulo, por parte do cristão que morre para o pecado com Cristo, com vista a uma vida nova. «Fomos sepultados com Ele, pelo Baptismo, na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos, pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova» (Rm 6, 4) (525).

Resumindo:

  1. Para benefício de todos os homens, Jesus experimentou a morte (526). Foi, de verdade, o Filho de Deus feito homem que morreu e foi sepultado.

 

 

 

  1. Durante a permanência de Cristo no túmulo, a sua pessoa divina continuou a assumir tanto a alma como o corpo, apesar de separados entre si pela morte. Por isso, o corpo de Cristo morto «não sofreu a corrupção» (At 13,37).